Nos dias de verão ela mal tinha fome. Almoçou rápido, um fetuccine com cogumelos de ontem, e foi correndo colocar um jeans para trabalhar. Estava ansiosa naqueles dias. Há tempos os sinos não batiam nas catedrais de seu coração, e depois de tanto os olhos pareciam brilhar novamente. Não sabia se viver a vida com mais intensidade quando apaixonada era defeito ou qualidade, mas desistiu de tentar entender e foi pegar o ônibus, porque já era hora de voltar para a real. Sentada no banco amarelo do ponto de ônibus ela esperava o seletivo, que também era amarelo. O asfalto escaldava e ela achou que a espera seria bem mais prazerosa se as ruas ainda fossem de paralelepípedos, como quando era criança e saía a andar de bicicleta pelo bairro, sem ter preocupações.
Mas o calor em excesso não era algo que a deixava de mal humor. Normalmente a deixaria, mas não naquele dia. Ela estava radiante e no mp3 player não poderia estar tocando algo menos arrebatador que U2, quatro, cinco ou seis baladas [românticas ou não] do The Joshua Tree, que ela ouvia insistentemente. Era sempre 1) Where the Streets Have No Name, 2) I Still Haven't Found What I'm Looking For, 3) With or Without You, 4) Running to Stand Still, 6) In God's Country, 7) One Tree Hill, não necessariamente nessa ordem, mas em grande parte das vezes sim. Ela nunca ia esquecer as lágrimas que caíram quando viu o Bono cantando Where the Streets Have No Name, naquele show, naquele ano, com aquelas amigas... lágrimas que não tinham explicação, lágrimas de amor e de dor, um choro descontrolado, sem medo. Engraçado como um simples acorde ou um gritinho histérico do sex simbol podia trazer tantas lembranças e sensações em um milésimo de segundo.
E ela resolveu abrir as páginas da revista que trazia embaixo do braço, talvez para entrar em uma outra realidade que não lembranças do passado, ansiedades do presente ou ilusões do futuro. Uma abstração. Resolveu ler um texto daquela boa revista que tinha descoberto numa lista de e-mails. Era a edição de novembro e trazia um texto de título: "Aula de anatomia". Não leve a mal, nem pense besteiras, pensou ela. A linha de apoio era: "Poucos brasileiros conseguem olhar para o próprio corpo como uma carcaça a ser dissecada na sala de aula". O texto falava sobre a doação voluntária de órgãos para as faculdades de medicina do País e da dificuldade em se conseguir novos corpos para o acadêmicos estudarem anatomia. Uma matéria interessante, com depoimentos marcantes de uma nissei de 75 que doou o corpo para pesquisa.
Dizia a doadora: "No velório do meu amigo vi as pessoas sonolentas, abrindo a boca. Não quero que se cansem por minha causa, nem que alisem minhas mãos frias. Prefiro que alisem minhas mãos enquanto estiverem quentes." E na declaração que fechava a reportagem com chave de ouro: "Gosto de viver bem, a lamúria incomoda. Esse corpo que eu cuido, que alimento direitinho, no qual passo creme todo dia, não vou deixar que seja comido por vermes. Quero para ele uma destinação mais nobre.", declarou a corajosa voluntária, uma entre os somente 19 que doaram seus corpos para a medicina. E nesse momento ela sentiu uma grande vontade de ser forte como a doadora. Momentos futuros de sua vida passaram-lhe pela mente, tão rápido quanto naquele milésimo de segundo em que teve boas lembranças. Imaginou a possibilidade de seus filhos e netos não a velarem, não terem a quem visitar no dia de finados no cemitério. E os estudantes do futuro, quando pegassem seu corpo para estudos, imaginariam o que ela viveu? por quais sofrimentos e alegrias passou? teriam certeza que ela fora uma pessoa feliz? ou teriam pena? ou ainda, tratariam aquele corpo com carinho, por ele lhe passar conhecimento?
Todos esses questionamentos rodearam os pensamentos dela, e quando o ônibus amarelo finalmente chegou e ela se sentou na cadeira estofada com ar condicionado a vida por um instante fez sentido.
*trata-se da revista piauí, novembro 06.
Um comentário:
Right on, muito legal, não sabia que você escrevia assim, direto do coração, parabéns!
Continue assim, we will be watching! Beijos!
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