O vidro do ônibus estava embaçado por causa da chuva. A água não cessava de cair há três dias e o olhar Alice estava longe, racionalizando um sentimento a cada milésimo de segundo. Aquilo já estava a deixando incomodada, porque começava a querer ter uma vida diferente. O ônibus finalmente desceu no ponto final, e a correria de pessoas indo e vindo deu a Alice a sensação de realmente estar em outro lugar, que não a cidade onde morava. Mais ainda, de estar em outra vida, que não a que levava... Justamente a sensação que incomodava momentos antes. Mas ela se entregou à ilusão.
A cidade em que estava não tinha nome, e nem Alice sabia como era sua vida paralela. O que realmente importava é que sentia-se leve. O caminhar era como uma dança, ao som da música que rodava no mp3 player. Naquela vida de sonho ela gostava de olhar as pessoas apressadas, as pessoas desoladas, as que sorriam e as que de mãos dadas caminhavam. Analisava cada uma delas naquele terminal e imaginava uma vida para cada corpo. Um homem sentando no banco poderia estar esperando a esposa. Para aliviar o marasmo ele mexia no celular. Estaria mandando uma mensagem? Procurando um contato? Ou apenas distraindo-se com um jogo? Alice não conseguiu criar algo interessante para o homem ansioso pelas teclas e o deixou para trás.
Passou então por uma garota. Cabelos lisos e claros, franja curta... justamente o cabelo que Alice sempre desejara ter, mas não fora presenteada pela genética com tal disposição. A menina tinha um brinco no nariz. Parou em frente a lanchonete do terminal urbano e olhou a vitrine dos doces. Na vida que Alice criou para aquele corpo, a indecisão era se comeria ou não uma barra de chocolate com recheio de morango. Comer seria deliciar-se com o sabor doce do chocolate, que chegaria a arder os dentes. Não comer seria privar-se da sensação para não engordar alguns quilos. Alice se deu conta que a vida daqueles corpos sempre poderia ter alguma semelhança com a verdadeira vida dela.
Passou por muitas pessoas, feias, bonitas, estranhas, altas, medianas, baixas, gordas, magras. Muitas vidas, muitas histórias. Coisas que alguém jamais conseguiria imaginar, coisas que ninguém quer acreditar que pode existir. Alegrias constantes, vidas de luta, vidas sem graça. De um segundo para outro as ilusões pararam na mente de Alice. Chegou ao segundo ônibus que deveria pegar, agora finalmente em direção a sua casa na vida real. Um casal feliz comia pipoca. A chuva insistia em molhar aqueles que esqueceram o guarda-chuva em casa. Entrou no ônibus e sentou-se. Mais pessoas entravam, alguns de fisionomia conhecida, outros não. Novamente, Alice olhava através do vidro com pingos de chuva. E os pensamentos... Os pensamentos insistentes não paravam de tentar traduzir o que seu coração sentia. Solidão.
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