segunda-feira, agosto 27, 2007

Rose Marie Muraro

Quando meu editor me perguntou: "você conhece Rose Marie Muraro?" e eu disse: "não." nunca imaginaria que poderia me identificar tanto. Imediatamente comecei a pesquisar no oráculo informações sobre ela. Li algumas entrevistas - há 47,5 mil resultados para o nome - e comecei a conhecer um pouco mais sobre essa mulher, que passei a classificar como fascinante. A entrevista estava marcada para sexta-feira pela manhã, depois do lançamento de uma cartilha sobre a Lei Maria da Penha, que combate a violência doméstica.

Assim que cheguei ao auditório Antonieta de Barros, na Assembléia Legislativa, não consegui enxergar Rose. Aos poucos avancei no recinto e lá estava ela, muito quieta, apenas observando, e sentada em sua cadeira de rodas. Aos 76 anos, uma artrose e câncer estacionado não permitem que ela tenha plenitude dos movimentos. Me aproximei, respirei fundo, como que para tomar coragem, e me apresentei. Primeiro teríamos que fazer as fotos, antes do seminário, e combinamos de conversar mais tarde. Cristina, uma entre os cinco filhos de Rose, estava acompanhando a mãe no evento. Confirmei com ela a entrevista para a parte da tarde, pois assim Rose poderia descansar.

Durante todo o dia respirei ansiosa, esperando o momento da conversa. Toda hora ficava relembrando o quanto seria especial poder conversar com uma mulher que foi uma das primeiras a lutar pelo movimento feminista aqui no Brasil, e com uma história de vida de luta e muita força de vontade. Rose nasceu parcialmente cega, mas nada foi suficiente para que ela deixasse de lutar por seus ideais. Às 17 horas liguei para o hotel e pedi o número do quarto. Ela atendeu, muito atenciosa, disse para eu ir.

Não esquecerei os momentos em que estava no carro, a caminho da entrevista. A cor do sol no céu, as mãos um pouco geladas, resultado do nervosismo, e a respiração mais profunda do que o comum. Sempre gostei dos momentos em que me dirijo à pauta, gosto de estar no carro e apreciar a paisagem, esquecendo o assunto que tratarei a seguir para ficar descontraída. Mas naquela tarde foi diferente. Acelerava rápido, porque o caminho não importava, e sim a fonte de conhecimento e experiência que teria contato a seguir.

Finalmente cheguei ao hotel. Rose estava de pijamas, sentada na cama em que provavelmente havia dormido, dando entrevistas para uma garota que faz o trabalho de conclusão de curso. Sentei em uma cadeira do quarto ao lado. Na mesa, um almoço, ou jantar, ainda não degustado. Algumas verduras. Uma janela com vista para o mar. Cristina abriu a janela e eu comentei: Ainda bem que está calor, assim ela não sofre tanto. A filha concordou. Esperei mais alguns instantes e Rose sentou-se à minha frente. Liguei o gravador e a conversa fluiu. A entrevista vem a seguir, e foi veiculada no caderno Anexo, do jornal A Notícia desta segunda-feira.
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Ainá Vietro
Florianópolis
com foto de Ricardo Mega


A imagem que se tem de Rose Marie Muraro tem tudo para ser a de uma mulher frágil. Aos 76 anos, sofre de artrose e se locomove com auxílio de uma cadeira de rodas. Mesmo debilitada por um câncer que estacionou, basta um dedo de prosa para se ter certeza que é uma mulher fascinante, "à frente do seu tempo", como ela mesma costuma dizer. A lendária feminista brasileira esteve na última sexta-feira na Assembléia Legislativa de Santa Catarina, durante o seminário "Uma Conquista - Lei Maria da Penha" e lançamento da cartilha sobre a nova lei que combate a violência doméstica.
Rose nasceu no Rio de Janeiro, em 1930 e veio para desafiar o impossível. Nas primeiras horas de vida, as amídalas lhe causaram uma infecção generalizada, que deixaram como seqüelas uma artrite, pouco para lhe conter a vontade de transformar o mundo. Mesmo parcialmente cega de nascimento, com visão de apenas 5% em um olho e não enxergando nada com o outro, Rose foi além do que os médicos reservaram para ela. Aprendeu a ler no primeiro dia de aula e nunca mais se separou dos livros.
Membro da família Gebara, uma das mais ricas daquele tempo, conheceu a pobreza e a dor da morte muito cedo. Aos 15 anos, viu o pai morrer na sua frente e presenciou a luta pela herança da família, que deixou sua mãe sem nada. A experiência traumática alertou a consciência social de Rose, que naquele mesmo ano ingressou em um dos grupos de Ação Católica Estudantil de Dom Helder Câmara.
Formada em física e economia, trabalhou nas editoras Vozes e Rosa dos Tempos. Escreveu mais de 30 livros e, nos anos 70, foi uma das primeiras mulheres a abraçar o movimento feminista no Brasil. Ao lado de Leonardo Boff, também lutou pela teologia da libertação. Nos anos 80 foi expulsa da Vozes, depois de publicar "Por uma Erótica Cristã", livro que foi a gota d'água para que o papa João Paulo Segundo pedisse sua cabeça.
Rose enxergou pela primeira vez em 1996, aos 66 anos, depois de uma operação de catarata. Hoje, depois de onze anos, sua visão novamente está afetada. Têm o auxílio dos filhos ou de óculos com graus bastante elevados na hora da leitura e da escrita. Rose não atua mais como editora, mas trabalha na segunda edição do livro "Automação e o Futuro do Homem" proibido pelos militares em 1975 por conter conteúdo erótico, mesmo não citando a palavra mulher e tratando da história da tecnologia.
Em entrevista ao jornal A Notícia, Rose Marie fala de suas memórias, da amiga Clarice Lispector e defende os pensamentos que a tornaram tão marcante e essencial na sociedade brasileira.

A Notícia – Para você tudo está baseado no amor?
Rose Marie Muraro – Mulher é amor...

AN – Só amou de verdade quando acabou seu primeiro casamento?
RM – Ele durou 25, mas com 18 anos eu já corneava meu marido, por causa do meu confessor e do meu analista. Eu era católica praticante e já estava querendo me tornar pós-cristã, meu confessor disse: “Seau casamento é iníquo”. Eu tive cinco filhos, tomava conta da casa, ainda pagava as dívidas dele e eu já tinha perdido o amor por ele desde o começo do casamento, quando eu percebi que ele era um psicopata, um doente. Aí meu confessor disse: “Vai à luta!” E o meu analista também: “Se você não descobrir uma segunda vida e descobrir o que é o prazer você nunca vai largar seu casamento”. Foi o que eu fiz, e acabei me separando dele, me divorciando.

AN – Como foi? Viu que nunca tinha amado ou chegou a amar?
RM – Toda a pessoa que tem psicopatia é muito sedutora, muito charmosa e leva anos para você descobrir que aquilo é uma persona, uma máscara que a pessoa põe para esconder a sua falta de limites. Ele tinha uma falta de limites com o mundo, que ele se apropriava das coisas e das pessoas como se fossem dele. Então dava cada confusão dos diabos. Ele era boa gente, era católico, bom pai, mas em matéria de dinheiro era uma coisa horrível.

AN – Foi difícil ver que não amava e teve de quebrar um relacionamento?
RM – Eu tava carregando a minha cruz, como todas as pessoas da minha época carregavam a sua cruz. Foi aí que eu fiz, eu já trabalhava na Vozes, já estava em contato com o pessoal da teologia da libertação, e era nessa época que estava todo mundo questionando o problema da sexualidade, do casamento da castidade. Então saíram padres e freiras à beça da igreja, foi nos anos 70, e muita gente se separou. Como eu, a maioria das mulheres da minha idade saiu dos seus casamentos para procurar o amor, então foi o movimento da cultura da época que quebrou todos os tabus. Se vocês hoje podem ter uma sexualidade livre, e se vocês hoje podem se casar depois de ter experiência sexual (porque eu me casei com o primeiro homem que eu namorei), se vocês podem fazer isso é graças a nós, graças àquela geração. Eu já estava à frente do meu tempo, como estou à frente do meu tempo hoje.

AN – Você costuma dizer que foi muito desejada e muitas vezes pedida em casamento depois disso. Nunca quis se casar de novo?
RM – Deus me livre, eu acho que a relação homem e mulher acaba quando começa o casamento. Porque quando começa o casamento vem o problema de filhos, de dinheiro, de bens, de partilha, quem faz isso, quem faz aquilo e a relação homem e mulher se desgasta muito, então vem um contrato jurídico. Eu não queria um contrato jurídico sobre os meus amores.

AN – As mulheres costumam reclamar da falta de homens. Você acha que falta mesmo?
RM – Nunca faltou homem, mesmo agora. O que falta para as mulheres é erotismo, junto com uma boa cabeça. É não ficar vidrada a um homem. Eu sempre tratei o homem com um salto de sapato na jugular. Eu não tinha casos, eu tinha grandes amores. Nada se faz na vida de grande sem uma grande paixão, eu só sei ter grandes paixões.

AN – Seus relacionamentos eram livres?
RM – Livre em um sentindo... eu não era promíscua, mas eu era monógama serial, como as americanas se definem hoje.

AN – Como assim monógama serial?
RM – Não tem o assassino serial, faz um, depois faz outro, depois faz outro? Eu era monógama, sempre fui monógama, nunca tive dois homens.

AN – Só conseguia gostar de um por vez?
RM – É, e quando rompia levava um ano chorando, aquele negócio todo. Depois até me apaixonar por outro demorava. Todas as mulheres são assim hoje, todo mundo, e eu comecei isso 35 anos atrás.

AN – Descobrir o prazer naquela época, depois de tanto tempo...
RM – Pois é, depois de ter filhos e netos... Foi maravilhoso, foi uma festa. Depois que eu me separei do meu marido, que ele aceitou a separação, ficamos muito amigos, quem cuidou dele até a época da morte fui eu. Ele se casou outra vez. Os homens são casadouros, as mulheres não. Os homens traem as mulheres para ficar no casamento e eles são polígamos. As mulheres traem os maridos para sair do casamento e elas são monógamas. Elas não conseguem ter dois.

AN – Ao mesmo tempo não conseguem?
RM – Não dá. Dá para você ter assim uns casinhos físicos, mas não dá para amar dois homens ao mesmo tempo. Os homens conseguem porque eles não se entregam nem para uma nem para outra. Existe uma incompatibilidade entre homem e a mulher. A mulher quer uma coisa e o homem quer outra.

AN – Por quê?
RM – Por um único motivo: eles têm duas economias libidinais, eles têm dois erotismos diferentes. O homem quer o sexo em primeiro lugar, a mulher quer o amor em primeiro lugar, porque o processo edipiano masculino é resolvido de um jeito, e o processo edipiano feminino é resolvido de um jeito completamente oposto. O homem larga a relação com o pai, larga a relação com a mãe. O pai ele detesta, porque é dono da mãe, e a mãe ele adora, mas ele fica com medo de ser castigado pelo pai, de ser morto entre aspas, quer dizer, cortado o pênis, aquilo do Freud que você conhece bem. E o único amor que sobra para o homem é o amor de si. Daí ele é treinado desde que nasce para a violência, para o mundo público, para a corrupção, para matar ou morrer. E a mulher, ela não tem pênis, não tem nada a perder então ela continua ligada a mãe e ela seduz o pai, então ela tem aquele triângulo, que ela está na base, ela tem todo ele íntegro. Então o amor é que salva a mulher. Se ela deixa de amar a mãe ela morre imaginariamente, se ela deixa de amar o pai ela morre imaginariamente. É o amor do outro que salva a mulher.AN – Isso faz as relações homossexuais e bissexuais?RM – Isso é coisa de hoje em dia, porque antes não era assim. A bissexualidade é um fenômeno muito recente, se tiver uns dez anos é tanto. Hoje você ama pessoas, pode ser homem, pode ser mulher. Eu nunca consegui, eu sou heterossexual viciada.

AN – Mas tentou?
RM – Deus me livre! Tentei, tentei, e as lésbicas se apaixonavam por mim, mas não adiantava nada. Eu dava no pé.

AN – Não teve nenhuma experiência então?
RM – Não quis.

AN – Mas elas gostavam?
RM – Gostavam muito. Eu ajudo muito o movimento gay. Acho que fui uma das poucas heterossexuais convidadas para a primeira marcha gay, nos anos 80. E tenho o prêmio do grupo Arco-Íris, do Rio de Janeiro, como a maior aliada do movimento gay no Brasil.

AN – Quando você era criança foi desenganada pelos médicos, mas logo na primeira semana de escola já estava lendo Monteiro Lobato.
RM – Disseram que não podia estudar. Eu aprendi a ler no primeiro dia.

AN – Você tinha consciência de que tentaria sempre o impossível?
RM – Desde que eu nasci. Eu nasci e tinha as duas amídalas infeccionadas, e eu engolia o pus. Tive infecção geral e fiquei com seqüelas, com artrite reumatóide. Se eu venci a morte no meu primeiro dia de vida, por que não vencer a cegueira?

AN – Você trabalhou como editora na Vozes. Como era esse trabalho?
RM – Ah! É uma maravilha! Quando você tem plena liberdade para fazer o que você quer, você pode mudar a vida um país, que foi o que aconteceu. Eu botei o movimento de mulheres pelas minhas publicações, que era em plena ditadura militar. A teologia da libertação, que veio com o Leonardo Boff, fui eu que ensinei praticamente ele, que eu tinha trabalhado com Dom Helder Câmara. Então, quando ele chegou, eu era editora geral, religiosa e leiga da Vozes, mas quando ele veio eu disse: “Você vai primeiro para favela e depois diz o que você quer traduzir. Ele veio com o livrinho chamado “Jesus Cristo Libertador” e eu vi que o garoto era um gênio. Ele era um grande criador, e foram os pobres que ensinaram a ele. Então hoje o movimento de mulheres é o movimento mais importante do mundo como a teologia da libertação está mudando a América Latina inteira, parte do mundo também.

AN – Foi nessa época que João Paulo 2o pediu sua cabeça.
RM – Eu já sabia que ele ia pedir minha cabeça, mas por causa do “Sexualidade da Mulher Brasileira”. Então como eu sabia que ele ia pedir minha cabeça, dei motivos e escrevi “A Erótica Cristã”, que é fazer um corpo erótico cristão, quer dizer, não usar mais a moralidade e sim a ética. Porque é imoral você estar num casamento que é feito só para o seu sofrimento e sofrimento de todos, e é ético você sair desse casamento para viver uma vida plena e dar aos outros uma vida plena. Foi desafiador.

AN - E o livro que você está escrevendo, previsto para o ano que vem?
RM - É o “Automação e o Futuro do Homem”, que os militares proibiram em 1975, que não tinha a palavra mulher em nenhum tempo, era a história da tecnologia, e proibiram como pornográfico. Ai eu fiquei 35 anos para poder fazer uma segunda edição. Estou quase enlouquecendo. Ele ainda não tem nome, mas eu gostaria de chamar de “O Arrependimento de Deus”, eu estou procurando na Bíblia e todas as vezes que Deus fala que se arrependeu de ter criado o ser humano e dá grandes castigos ao povo de Israel. Depois Ele se arrepende porque quer dar mais uma chance. Quem sabe Ele não está arrependido e quer dar mais uma chance?

AN – Como era a relação com Clarice Lispector?
RM – Eu vivia no meu canto e ela vivia no dela. Ela leu livro “Automação e o Futuro do Homem” e escreveu artigo sobre mim, sobre esse livro, no “Jornal do Brasil” de 1972, se não me engano. E aí ela me telefonou e perguntou: “Como é que você se sente sendo um gênio?” Eu perguntei, “Ô, Clarice, você está falando comigo ou com outra pessoa?” Aí ela me disse, “Não, desculpa, vem aqui na minha casa”.

AN – Sobre o que vocês conversavam?
RM – Bom, deixa eu te contar algumas coisas que eu botei na minha autobiografia, “Memórias de Uma Mulher Impossível”. Inclusive quando eu perguntei para ela que livro eu devia ler antes de falar com ela, ela me disse: lê “Paixão segundo GH” (da própria Clarice). Eu li, e foi a coisa mais extraordinária que eu tinha lido na minha vida, até então. Continua sendo uma das coisas mais extraordinárias que eu já li. Porque é a história, durante 200 páginas, de uma mulher que comia ou não comia uma barata, porque você sabe que os grandes santos, os grandes místicos da história, eles sempre faziam um ato de abjeção, do tipo comer uma barata ou chupar o pus de um leproso, uma coisa assim, para transcender a condição humana, e eu disse: “Você tem as mesmas intuições que Santa Teresa e São Francisco de Assis, você sabia disso?” E ela disse: “Não, nem quero saber para não dizer que eu plagiei”.

AN - Ela era muito profunda?
RM - Ela era, a gente conversava e eu me lembro de outra vez que ela dizia: “Eu fiquei quatro horas olhando uma vela e é nesses momentos que meu inconsciente sai e é nesses momentos que eu começo a criar tudo.” Era onde ela tinha o encontro com a profundidade dela.

AN – Não teve coragem de visitá-la no leito de morte?
RM – Não, porque eu vi meu pai morrer no meu pé, eu vi a morte e nunca mais tive boa relação com a morte. Toda vez que uma pessoa morria, eu queria ter a lembrança da pessoa viva e não quis ter a lembrança da pessoa morta. Eu só consegui superar isso quando a minha mãe morreu, faz três anos, e aí consegui ver a morte.



3 comentários:

rbe disse...

Clarice tinha uma chavezinha pra entrar no inconsciente coletivo!



Essa e uma daquelas entrevistas pra contar pros netos!


Opa, netos?

Ti amu

Andréa da Luz disse...

Que mulher fabulosa!!!

Lealdade Feminina disse...

Posso copiar essa entrevista no nosso blog exclusivamente sobre a Rosemarie Muraro?
aguardo sua autorização... ou sua reclamação...rs...