sexta-feira, setembro 14, 2007

Mergulho no Palco


Sempre me é difícil começar a escrever. O ponto de partida para um bom lead, ou até mesmo para as minhas postagens aqui, quando vou tratar daqueles temas que mais me emocionam, geralmente são suados e esforçados. Dessa vez não foi diferente quando pensei em escrever sobre a minha ida ao teatro, ontem. Aí coloquei uma melodia agradável (trilha sonora da Amelie Poulain) e pronto. Que bom contar com a música como fonte de inspiração.
A peça chama-se "Women's White Shirts". É um monólogo, com base no texto do dramaturgo argentino Daniel Veronese, com direção de André Carreira. Mesmo sendo um monólogo, são duas atrizes no palco: Lara Mattos e Luana Raiter. Luana é Adair, faxineira solitária, que trabalha na limpeza de um necrotério. Lara é uma mulher morta, que deitada nua na mesa aguarda a necropsia. Adair vê na morta a amiga que nunca teve e desabafa as suas tristezas.
A apresentação faz parte de um projeto chamado "Mergulho no Palco", que prevê o auxílio financeiro para grupos daqui, e tem a intenção de aproximar a platéia dos atores. Por isso, a peça é encenada no palco (claro), e os espectadores também ficam no tablado, bem perto de quem está encenando. Acho muito legal poder ver os atores (e bailarinos) assim de perto. Me parecem mais humanos, mais próximos, mas nem por isso perdem o encanto.
Por causa do projeto, a entrada até o palco é feita por trás do teatro. O caminho da porta de entrada até a coxia, passando pelos camarins, é mágico. Faz a gente sentir ter um pouco de arte também. Eu, em especial, me lembro de quando era bailarina. Dos momentos antes do palco, da maquiagem, do figurino, o frio na barriga, o medo de esquecer a movimentação. Do cheiro do teatro, do perfume que a dança tem...
Quando entramos no palco (Rafa estava comigo), a iluminação estava em meia luz. Em pé, de costas para o lado em que o público entrava, estava Adair. O cheiro de éter. Na mesa, um lençol cobria a morta. Depois de alguns instantes, a faxineira começou a caminhar pela sala e sentou-se em uma cadeira. Tudo no cenário era branco, muito limpo e asséptico. Começou a remexer sua sacola, inquieta, e tirou um cigarro. Acendeu. Fumou devagar.
Procurou depois, na mesma sacola, daquelas de levar as frutas da feira, um radinho. Sintoniozou em uma rádio evangélica. A solidão era tanta que Adair tentava conversar com o rádio, ligado. Engraçado como as pessoas reagem de formas diferentes. Um senhor que estava próximo ria com a cena, achando por certo muita graça. Mas a mim, trouxe uma agonia. Até que Adair se revoltou, o radinho de pilha não lhe dava ouvidos. Com raiva e muita força jogou o rádio no chão, que caiu, espatifado.
A partir daí ela começa a limpar, e a falar sobre a sua vida. O vizinho, que de tempos em tempos deixava caixas de roupas, muito novas ainda, na porta de sua casa. Falou de sua irmã, por quem demonstrava ter muito amor, e do marido da irmã, que toda a quarta-feira saía do trabalho e a visitava, com a desculpa de tomar "um mate". Até que Adair tira o lençol que cobre a morta, e fica estática. Primeiro contato com a morte, de perto. Com a vassoura, começa a mexer, assim de longe e receosa, no corpo. Mas ela logo perde o medo, e projeta naquela pessoa ali, sem vida, alguém para escutar seus tormentos.
A faxineira manipula a morta, abraça, belisca, morde, joga no chão, de acordo com a intensidade da sua história, da sua raiva ou amor. Ou compaixão.
Nas palavras de Adair, senhor Carve (o vizinho) percebe o quanto ela está incomodada com as visitas do cunhado, e promete matar, com um tiro "meto-lhe na nuca", na próxima vez que ele ousar um encontro. E sempre, sempre ela lembra com carinho da irmã, de quem era muito próxima. Mas inevitável, a morte vem para o cunhado que entra na casa com uma chave improvisada em clips de metal.
E senhor Carve deixa a arma nas mãos de Adair. Segue alguns questionamentos, e outros vizinhos começam a duvidar da verdadeira existência de Carve. Agora ela olha com carinho para a morta, já sentada em uma cadeira. Arruma o cabelo, como o da irmã, maquiagem para ficar "com uma corzinha", sombra nos olhos, batom. "Está com frio? Vou lhe cobrir, como mamãe fazia quando éramos pequenas".
Luzes se apagam. Ffim, da peça. Recomeço, da triste solidão de Adair.

Nenhum comentário: